CORP_(R)FURAD_
SOBRE O PROCESSO
Esta exposição é um (des)(re)dobramento de algumas pesquisas artísticas que tenho feito ao longo de minha trajetória. A pesquisa tem início no período em que estive no Mestrado. Junto à isso, participei de um curta-metragem, Rachas, feito junto à algumas artistas da performance e do vídeo, como Bruna Brunu, Ana Reis, Olívia Franco e Luana Diniz. Após isso, participei de uma residência artística, viabilizada pelo Circuito de Festivais de BH. Assim, na continuidade processual das pesquisas, fui experimentando alguns modos possíveis de transitar entre as questões que atravessam essa pesquisa e algumas possibilidades de suportes artísticos em fotoperformance, colagem, textos, fotografia e vídeo.
Durante minha pesquisa no mestrado em Artes Cênicas, realizado na Universidade Federal de Uberlândia, pude transitar em questões de gêneros, sexualidades em relações de capturas e fugas do sistema colonial farmacopornográfico que atravessa minha corpa. Corpa, aqui, diz sobre existências dissidentes do sistema binário-colonial-branco-heterossexual-burguês-capacitista que nos captura constantemente. Digo aqui não sobre identidades, mas sobre performatividades de existências, do que ultrapassa as dimensões macropolíticas sobre o que "significa ser" alguém ou algo. A utilização da letra “a”, em corpas, é um posicionamento político-estético-prostético: um furo. Utilizar corpas, abre possibilidades de pensarmos o mundo a partir da existência de corpas que fujam da existência branca, cismasculina, heterossexual. Não sei dizer com exatidão de onde vem a utilização do termo “corpas”, mas aposto na construção prática dele, criado, experienciado e utilizado por corpas dissidentes, embora ainda pouco normatizado pela bibliografia acadêmica. Esse posicionamento político frente à linguagem atravessa minha experiência a partir do encontro presencial ou por palestras, falas, vídeos e em redes sociais, com algumas mulheres trans e travestis que têm utilizado dessa maneira, como, por exemplo, Áquilla Correa, Renata Carvalho e Vulcanica Pokaropa, artistas da cena contemporânea. Mas não só. Provavelmente, em muitos textos, produções, falas e posicionamentos de corpas dissidentes, trans, travestis, não-binárias, a utilização de corpas se fará presente, justamente pela possibilidade de colocar no mundo um conceito que não esteja calcado na noção comumente associativa de “corpos” à existências normativas e dominantes. Nesse sentido, utilizar esse termo em uma produção inserida dentro do contexto acadêmico se faz necessária pela possibilidade de quebra dos modos normativos de se referenciar às corpas, sempre tratadas como “corpos”, desconsiderando suas existências multiplicitárias. Aposto na prática da utilização de corpas também como uma referenciação política à existências que produzem seus modos de vida nas bordas do que são consideradas as existências hegemônicas. Isso não quer dizer que quando digo “corpas” estou dizendo apenas de pessoas que se identificam como femininas ou mulheres. Não somente. Aqui, nesse contexto, corpas diz respeito àquelas que existem também para além do sistema binário, cisnormativo e heteronormativo de enquadramento das existências, como mulheres cis e trans, pessoas não-binárias, agêneras, travestis, homens trans e ainda outras considerações de existências possíveis nesse mundo. Quando me refiro à concepção corpas faço menção à amplitude de dizer sobre estas no mundo contemporâneo e ampliando a noção de teorias de gênero que consideram, por exemplo, a dimensão política do termo “mulher”.
Enquanto pesquisava essas questões que atravessam esta corpa que estou, encontro uma pessoa que desloca minha existência. Rapidamente sou levada à experiência material da dissidência de gênero e sexualidade. Por esse encontro, redescubro minha sexualidade. Transitar pelas descobertas e cavucar buracos de existência pressupõe fazer furos nos modos anteriores de existir. Por esse encontro, começo a descobrir outras marcas em meu corpo que antes eram desconhecidas. Encontro em mim, junto a ela, um buraco. A sexualidade heteronormativa compulsória é capaz de furar as corpas subjetivamente e fisicamente.
Precisei chegar em casa pra encontrar isso. Quando chego em casa, é quando me (re)encontro. Chegar em casa nada tem a ver com território e espaço geográfico. Chegar em casa tem a ver com desaparecer a sensação de que alguma coisa está errada em mim. Quando senti seu cheiro a primeira vez e quando me encontrei com elu, na intensidade do afeto, descobri em mim o que não tinha de errado. Descobri que os afetos quando criança, passaram por um processo de tamponamento, como uma barragem que só resta pingar. Pinga um pouco aqui, um pouco ali, uma goteira boba que esquecemos de tampar.
Chegar em casa é destruir os muros e destampar as águas em que correm os afetos e as sexualidades. É deixar correr as águas turvas que se acumularam ao longo dos tempos.
Quando cheguei em casa, em um dia qualquer da vida que acontece, você me contou do buraco que tinha na minha buceta.
Um buraco, literalmente. Não esse anatômico, mas um feito pelo pau duro do patriarcado. Um feito por um homem cis que abriu minha buceta pela violência de seu pênis-cis. Enquanto minhas lágrimas corriam de dor ele me dizia pra parar com isso, que é assim mesmo: depois que entra lubrifica.
Me abriu um buraco. Um buraco literal, um buraco subjetivo, um buraco político, um buraco existencial. Eu mesma tentei encontrar posições em que eu conseguisse abrir meus próprios buracos. Esse mesmo, pra ver até onde a pele não poderia rasgar, para testar os limites das bordas. Não encontro posição possível de abrir esse buraco. Parece que precisaria sempre de outra para vê-lo e abri-lo ao seu limite.
Costumo chamar de ex-estuprador aquele que durante 4 anos me violentou. Com 14 anos perdi minha virgindade, fruto de um estupro. Me relacionava com esse homem, mas minha virgindade foi um estupro seco, sem gosmas que pulsavam, a não ser o gozo dele que escorreu pelas minhas pernas quando levantei pra fazer xixi e vi sangue escorrendo junto. Sangue e porra se misturaram naquele dia, que chovia e eu sentia o cheiro da casa dele em todas as partes do meu corpo. Durante 10 dias sangrei, ininterruptamente. Durante 10 dias eu achei que nunca mais ia parar de sangrar e que minhas pernas nunca mais parariam de sentir dor. O meu peito afundado pelo peso do corpo dele em cima de mim, sentia dificuldade de respirar. A violência que atravessava meu corpo demorou 11 anos pra escorrer. Sangrei por 10 dias e estanquei a corpa por 11 anos.Esse furo, marca prostética da opressão cis-patriarcal-masculina se apresenta para mim como possibilidade de encontro com minhas próprias ruínas de colonialidade. Como digo ao longo desse texto, não podemos unicamente ser colonizadores ou colonizados, mas sim, passamos por constantes e coabitantes processos de opressores e oprimidos e, essas duas instâncias caminham juntas, complicadas pelos modos de vida que vivemos e por onde seguimos fazendo nossos cortes das linhas de subjetividade. Por esse aspecto, acredito veementemente que os processos de decolonialidade não são feitos senão coletivamente e junto à outras corpas, em construções multiplicitárias de existências por-vir. É a partir do encontro com outra corpa que descubro em mim marcas de colonialidade que, por mais que não fossem objetivamente vistas, se emaranharam em minhas construções subjetivas e de performatividades de vida. É a partir do corte micropolítico ativo, de reativação de sexualidades e formas de vida que há muito estavam estancadas em mim, que pude perfurar o furo. Por esse aspecto, aposto novamente, nos espaços vazios como construtores de subjetividades desviantes às normatividades da vida que vivemos.
Frames do curta-metragem "Rachas" produzido junto às artistas Ana Reis, Bruna Brunu, Luana Diniz e Olívia Franco, viabilizado em 2020 pelo projeto Multidão em Um (PMIC). Videografia: Bruna Brunu e Olívia Franco.
Traçar caminhos de minhas existências é traçar caminhos por onde adentro as estruturas normativas e por onde as rasgo e rasgam em mim e rasgo o rasgo que rasgaram em mim. A implicação política de experiências atravessadas em minha corpa gesta brotos de construções artísticas, ainda por-vir em lugares nunca antes habitados. Aposto nos encontros como disparadores de construções artísticas: até que ponto consigo mesmo criar algo sozinha? Minha corpa não necessita de outra para que o encontro se geste, exatamente ali naquele espaço em que nenhuma de nós consegue acessar?
Convocar, a partir do encontro, os espaços vazios que contêm as experiências autobiográficas para a criação de performances e performatividades. Encontrar no espaço entre os buracos e as fendas os encontros com outras corpas que são capazes da criação de redes, independente se pela proximidade ou distanciamento de existências. Descobrir, junto à outras, o que se inscreve em nossas corpas.